15 de abril de 2012

pessoal (parte 1)

Acordei naquela manhã com frio. Demorei pra levantar. Não sou desses, preguiçosos. Não espero a vida acontecer, tampouco deixo que outras pessoas a dominem. Logo, estranhei quando não quis levantar.
Fazia 5 anos que meu irmão tinha desparecido, naquele dia, naquela manhã. Nunca me importei.
Quando disse que não ia criar drogado em casa eu tinha falado sério. Pelo visto, ele não teve futuro mesmo. Tentou voltar uma vez mas eu não deixei. Repito: nunca me importei. Meus pais - covardes em não aceitar a realidade - nunca se importaram, por que eu, mero irmão mais velho me importaria? Tentei criá-lo. Desisti em pouco tempo. Não tinha me criado, queria criar outro - que não queria ajuda? Quem sou eu para fazê-lo?

Ah, voltemos à manhã.

Quando consegui levantar fui ao banheiro, como ritual, de praxe, usual, então. A barba já tinha crescido mais um tanto, e eu não iria fazê-la. Minha nêga disse que gosta assim, deixa, né? Tem que agradar a mulher às vezes. Ela passa aquela coisa toda na cara pra ficar bonita pra mim, eu deixo a barba crescer, assim que as coisas têm que ser; recíprocas.
Aí lembrei dela e dei um sorriso. Sem mostrar os dentes, de ressaca, mas sorri. Tava feliz, sabe?
Lavei o rosto, escovei os dentes, e desejei algum desses trecos que as nêgas passam pra esconder olheira.

Nem tomei café, nem dei beijo na mãe, fui pra rua.

Estava frio, e consequentemente, nublado. Fiquei extasiado em sentir o vento no meu rosto, e pensei seriamente em voltar pra casa, fazer a barba só pra passar pós-barba na cara e sentir o vento de novo.
Fui pegar o ônibus e logo esse vento passou.
Abafado. Ia chover, então fecham as janelas do inferno. É homem encostando em quem não conhece, mulher com três bolsas e menino no colo, você deve saber. E eu lá. De casaco e documento na mão. Ia pagar umas contas no banco, mas estava quase desistindo. Primeiro por este inferno, segundo porque estavam atrasadas e eu estava duro. Talvez se atrasasse mais eu conseguisse juntar um dinheirinho bom, e com o que sobrar, eu ia pedir a nega em casamento. Quase, pra variar. Eu quase isso, quase aquilo, mas nunca.
Aí enfim desci.

Muita gente na rua. Admiro essas pessoas que acordam cedo e lembro sempre do meu irmão que reclamava de fazer o mesmo. Ele acordava cedo para ir ao colégio, e não para pegar no batente. Não precisava daquele escândalo todo que ele fazia. Só de lembrar o sangue ferve.
Mimado de merda.

Fechei a cara ao lembrar. Várias pessoas passaram por mim nesse momento, mas um me chamou atenção. Era careca, de óculos escuros e sapatos caros. "Mais um desses charlatões", pensei.
Continuei andando, agora com passos acelerados. Parei num quiosque para comprar Coca-Cola, mas nem isso tinha. Continuei andando como tivera feito a vida inteira.
Quando parei para atravessar o sinal, alguém encostou a mão no meu ombro.
Virei preparado para dar um sorriso ou um soco.
Quando virei, pensei em dar a segunda opção.

Era o tal do homem charlatão.
O sinal abriu, e eu dei um passo. Ele foi direto:
- Você sabe bater? - e eu continuei andando, sem parar. - Você sabe bater, imbecil? - ele repetiu. Fechei a cara novamente. Sabia que não devia ter saído de casa, sabia. Dei meia volta e o sinal fechou. Cheguei perto dele e, pacientemente, perguntei
- O que você disse?
- Não me faça repetir.
- Foi isso mesmo que eu entendi - e virei as costas maaais uma vez. Ele colocou a mão no meu outro ombro e eu virei um tanto bufante - O que você quer?!
- Você sabe bater?
- Sei.
- Me mostra.

Ri.
Ridículo. Agora ele queria fazer ceninha ali, no sinal? Com várias pessoas em volta?

- Não me dou a esse luxo não, doutor. Com licença que eu tenho coisas a fazer.

E me deu um soco. No queixo.
Doeu.
Dor que há muito não sentia.
Revidei.
No olho.
As pessoas olharam, um cara se aproximou para nos separar, mas o charlatão afastou-o dizendo que estava tudo bem. E eu já não entendia mais era nada. Queria voltar pra minha cama, tava bom lá.

- Ah, que que foi agora? - eu perguntei
- Você é bom, moleque
- Tá, posso ir? Caralho! Agora além de ter que pagar conta vou ter que consertar meu queixo. Vá procurar o que fazer, infeliz!
- De quanto é essa sua conta?
- O quê?
- Qual o valor da sua conta?
- Oras, não se meta na minha vida, velhaco!
- Eu pago sua conta.
- Não preciso. - atravessei finalmente o sinal e ele atravessou junto.
- Precisa sim. Você tem cara de quem precisa. Mas eu também preciso. Preciso de alguém que soque como você.
- Tem academia de boxe aqui perto, doutor. Procura lá.
- EU PAGO SUA CONTA, IMBECIL. Ainda sobra dinheiro extra. É pra coisa SÉRIA que eu preciso de você, não se recusa coisa séria, é quase uma caridade, um serviço de solidariedade, aceita e me escuta, porra! Gostei de você quando fechaste a cara há alguns minutos atrás.
Não foi à toa, porra.
Me escuta e aceita.
- Não aceito e te escuto, diz.
- Te pago bem. Sou dono de consórcio, tem minha palavra. Quero me vingar de uma mulherzinha. Uma vagabunda, na verdade.
- Como assim?
- Você enche ela de porrada - ele abaixou o tom de voz - mas só até o nariz dela sangrar. Não desmaia nem mata. Tá me ouvindo? Não desmaia nem mata. Só pra dar um susto na vagabunda.
- Cê ta brincando que eu vou bater em mulher por dinheiro, né? Dá licença, meu senhor, dá licença.
- Eu pago o que você quiser, criança. Eu tô precisando, cacete. E tu? Tá precisando do que?
- De ir. De pagar minhas contas, fechar meu queixo.
- Tu não tem mulher?
- Tenho sim, doutor.
- Tu não quer dar nem uma joiazinha pra ela?

Fiquei em silêncio.
Aquilo era corrupção. A gente sabe que em mulher não se bate.
Mas toca no assunto do coração e do bolso a gente até pensa.
Até.

- Quero sim.
- Então.
- Mas com o meu dinheiro.
- O dinheiro vai ser seu, mula! Te dou quanto for necessário. Só quero uns socos. Você não estará sozinho.
- Tá.
- Aceita?
- Quero ver qual é.

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Ahá.