Ser criativo não é tarefa fácil.
Admiro os que dependem dessa coisa maluca e deliciosa (assim como algumas mulheres, mas isto é apenas um adendo) para sobreviver.
Enquanto lia o Xangô de Bakerstreet, para variar, na fila do ônibus, um rapaz jovem de camisa azul, calça preta e sapatos bem engraxados berrava versículos da Bíblia por toda rodoviária. Mas é lógico que ele parou do meu lado.
I
Acho que este fato, de eu ser a escolhida para atazanarem, não é mera obra dos Satanás e Deus testando minha paciência. Deve ser porque me incomodo com pouca coisa. Na verdade, me incomodo com muita coisa, mas não reclamo em público da forma usual. Prefiro fazê-lo escrevendo, por exemplo.
Mas uma das coisas que mais me irritam nesta vida nada mais é do que: o barulho. Essa coisa desafinada, dissonante, repetitiva e que os seres estabanados, descuidados, provocativos ou apenas completos imbecis causam.
Este detalhezinho irritante... Eu não consigo. Tenho que cessar.
II
Se você vive em sociedade urbana e atual sabe que o necessário para silenciar um barulho é: fazer um outro barulho maior ainda.
Pois bem.
Tentei me concentrar no livro. Todavia, as letras grandes e o vocabulário divertido não conseguiram me fazer prestar atenção. Fechei-o, marcando a página que lia com meus próprios dedos, e passei a observar o jovem pastor, padre, Testemunha de Jeová, ou como for chamado.
Ele carregava uma Bíblia debaixo do braço e mantinha outra aberta em uma das mãos. Lia o verso, frase, parágrafo e o berrava no meu ouvido. Depois, interpretava-o mais alto ainda. Afinal de contas, foi Deus quem escreveu o livro mas o que importa mesmo são as interpretações.
Começou seu discurso olhando para o chão.
Dizia que às vezes a vida nos põe para baixo. Que nada dá certo. E que nos afundamos em nós mesmos. Que estávamos, por fim, perdidos neste mundo caótico e cheio de pecados e que, se deixássemos, eles se aproveitariam do nosso corpo e alma cedidos pelo céu.
De repente, o homem ergue a cabeça, olha para o teto da rodoviária e grita: ENTÃO, SURGE A LUZ!
Tomei um susto. Tanto tomei que olhei para cima também.
Ele prossegue ordenando que os perdidos aproveitem tal luz. Que ela veio para nos salvar e que, muitas vezes, está em detalhes nas nossas vidas; mas que só os esforçados e dedicados a Deus poderiam, de fato, aproveitá-la.
Achei meio contraditório, mas como expliquei anteriormente, guardei para mim.
Cansei de olhar para o homem e voltei ao Jô Soares. Consegui me concentrar por uns instantes, e meu bom humor até voltara.
O rapaz percebe que não mais estou prestando atenção nele e chega mais perto ainda.
Continua
a berrar sem sequer olhar no meu rosto, apesar de estar bem ao lado.
Condena os pecadores e logo depois os perdoa, dizendo que ainda há
salvação.
Não olho para o rosto dele também e ele parece aumentar o tom de voz.
Ele volta a ler um versículo da Bíblia, em voz muito alta novamente.
Respiro fundo. Eis que o homem solta um agudo na voz. Não sei porque diabos ele fez isto; talvez ainda esteja em fase de crescimento.
III
Parei para pensar um instante.
Sou jovem, cheia de saúde e energia. Meu ônibus ainda não chegara. Não conseguia me concentrar no livro.
Não tinha nada para fazer mais tarde naquela tarde bonita, apesar de tudo.
O que eu tinha a perder?
Esperei o rapaz parar para respirar e comecei:
- DONA ESPIRIDIANA JÁ ESTAVA ACOSTUMADA COM OS HORÁRIOS DO MARIDO! SABIA QUE UM DELEGADO DE POLÍCIA MUITAS VEZES PASSAVA A NOITE EM CLARO E MELLO PIMENTA ERA UM HOMEM DEDICADO A SUA PROFISSÃO! - logo, todos os olhares voltaram-se para mim. Até o olhar do homem, que antes me ignorava. Ao saber que atrai atenção, fiquei tímida. Quase desisti.
Mas não poderia abandonar o show deste jeito.
Comecei a agir como ele agira: andando, parando ao lado das pessoas. Fazendo de forma teatral. - ELE COSTUMAVA BRINCAR COM ELA A RESPEITO DO SEU NOME...
Eis que o pastor-padre-Testemunha-de-Jeová tenta berrar mais alto. Mantenho o tom. Geramos uma certa confusão e quando eu menos vi haviam algumas pessoas seriamente prestando atenção em nós. Me senti no palco, ainda que tímida.
Vi que estava fazendo isso errado e provocando apenas mais um barulho burro.
Logo, toda pausa que o homem fazia para respirar ou pensar nas interpretações, eu começava um novo trecho sobre a história do violino roubado.
O rapaz estava ficando deveras chateado. Não que, de início, esta fosse minha intenção; mas naquela altura, eu pouco me importava.
Estava inclusive me divertindo.
E foi assim até meu ônibus chegar.
Voltei à fila depois de recitar vários trechos andando em movimentos circulares e o homem pareceu se acalmar.
Uma mulher grita de longe, para mim:
- Ei! Não vai terminar a história não?
O homem fecha a Bíblia e parte para outro canto da rodoviária.
E eu, para a W3 Sul.
IV
O que é a vida senão o marketing?
Parabéns aos publicitários, designers, desenhistas, escritores, deuses, e aos pastores-padres-Testemunhas-de-Jeová.
Não é fácil estar no lugar de vocês.
E, de fato, sem vós o mundo seria diferente.
obs:
Repare que eu disse "diferente".
Não bom, nem ruim.
Mas talvez um tantinho mais silencioso.
31 de julho de 2013
14 de julho de 2013
Anadotas sei lá o quê
I
O que é o tempo, senão uma brincadeira de criança? Quase como um jogo de tabuleiro.
Minha irmã, por exemplo, quando estava prestes a perder qualquer jogo, jogava o tabuleiro para o alto.
Bonito jeito de livrar-se do tempo, diria.
Mas o que é a vida senão aprender a perder?
II
ando tão e t í li ca
mas tão etíl ic a
que cambaleio
III
queria ser haicai
natureza e paulo
mas ainda sou rima
concreto e casulo
IV
Meu tipo de homem sabe tudo sobre Jean Paul Sartre, Miles Davis, Rodin e Dziga Vertov.
Mas prefere assistir A Hora do Pesadelo comendo batata frita.
O que é o tempo, senão uma brincadeira de criança? Quase como um jogo de tabuleiro.
Minha irmã, por exemplo, quando estava prestes a perder qualquer jogo, jogava o tabuleiro para o alto.
Bonito jeito de livrar-se do tempo, diria.
Mas o que é a vida senão aprender a perder?
II
ando tão e t í li ca
mas tão etíl ic a
que cambaleio
III
queria ser haicai
natureza e paulo
mas ainda sou rima
concreto e casulo
IV
Meu tipo de homem sabe tudo sobre Jean Paul Sartre, Miles Davis, Rodin e Dziga Vertov.
Mas prefere assistir A Hora do Pesadelo comendo batata frita.